Coluna Geremias Pignaton: Água no Leite
Nas roças dos descendentes de italianos, as crianças trabalhavam muito. Chegava-se ao cúmulo dos pais tirarem elas da escola para ajudarem na labuta diária de lavrar a terra, cuidar dos animais e nas tarefas domésticas. Isso acontecia também nas famílias brasileiras, mas, com os de origem italiana, o trabalho era culturalmente mais estimulado e mais intenso.
Com ele não era diferente. Aos 9 anos de idade, acordava ainda com escuro, ajudava a mamãe na ordenha das vacas, tratava galinhas e porcos e, só depois, partia para a estrada diária de 3 quilômetros até a escola. Ao retornar por volta do meio-dia, almoçava e ajudava o pai na roça. Com a tarde caindo, ia ao pasto prender os bezerros e separá-los das vacas. Isso, de segunda a sábado. No domingo havia uma folga, mas os animais não conhecem o calendário e precisam de manejo todos os dias.
No caminho para a escola, levava uma leiteira de 5 litros cheia para a vovó, que havia mudado para a cidade.
Naqueles dias, final da década de 1950, uma família de negros passou a residir no prédio abandonado da estação velha. A casa improvisada e muito mal aparelhada abrigava a numerosa família, que vivia numa pobreza de dar dó. O pai deles trabalhava de diarista nas roças, com um rendimento pequeno e escasso. Viviam praticamente daquilo que ganhavam dos habitantes do entorno.
Ele passou a observar aqueles meninos mal vestidos e doentes. Sentiu que eles passavam fome. Seu coração generoso, que o acompanhou por toda vida, começou a ordenar a solidariedade. Ele poderia ajudar de alguma forma. Todos os dias, passou a dar-lhes um ou dois litros da leiteira da vovó. Fazia isso de forma oculta, com o infundado medo de que vovó e papai brigassem com ele. Afinal, o leite também era precioso para eles e faria falta.
Para que a vovó não notasse, mais adiante no seu caminho, na frente da igreja, havia uma torneira que as pessoas usavam para beber e lavar os pés descalços antes de entrarem na cidade. Ali, completava a leiteira com água.
Sempre ouvi contar histórias da fraude dessa mistura. Tem aquela bem batida do encontro de um lambari dentro do leite. Tem outra do leiteiro que comprou um chapéu com o lucro da enganação, o vento o tirou da cabeça e jogou num imenso rio: água deu, água levou. A desse meu generoso irmão é a mais bonita que já ouvi.