Coluna Geremias Pignaton: O Leiteiro Gaiteiro
À tardinha, quando o dia ia caindo, o leiteiro gritava no portão. A tarefa de ir lá receber um litro de leite por dia era minha. Recolhia o precioso líquido num canecão e o colocava na geladeira.
Pela manhã, bem cedinho, mamãe retirava a nata, antes de ferver o leite para o café da manhã, e a depositava num pequeno pote. Quando o volume era suficiente, ela batia e fazia manteiga.
A manteiga que mamãe fazia com apenas um litro de leite por dia era a melhor que já comi. Nem no tempo que morei no norte da Itália, que fabrica dos melhores laticínios do mundo, provei mais saborosa e cremosa. Escrevendo agora, o sabor retorna a minha boca em forma de saudade.
Durante alguns anos, o leiteiro que trazia o leite era um tal Gessi. Ele era jovem, por volta dos 20 anos. No instante em que ele depositava o leite no canecão, travávamos um breve diálogo que girava em torno do clima, do animal que ele montava, do filme que seria exibido no cinema no sábado à noite, ou de qualquer outra coisa sem muita importância. O que mais ele gostava mesmo eram os filmes de bangue-bangue exibidos no Cine Redivo nas noites de sábado.
Gessi coxeava de uma perna, uma sequela de paralisia infantil. Tinha um espírito alegre, cavalgava na montaria sempre cantando ou assoviando, sentado na sela entre os dois latões de leite pendurados um de cada lado.
Descobri, nas conversas que travava durante o recebimento do leite, que ele tocava gaita. Era apaixonado por música, entretanto, havia perdido seu instrumento numa aposta de baralho e ainda não tinha como adquirir outro. Disse-lhe que eu possuía uma, que comprara em Aparecida do Norte.
No dia seguinte, levei minha gaita para ele. Ele ficou numa alegria de criança quando tem em mãos um brinquedo novo. Tocou várias músicas: Tonico e Tinoco, Luiz Gonzaga, Tião Carreiro e Pardinho, Roberto Carlos, Jacó e Jacozinho... Atrasou naquele dia a entrega do leite nas casas seguintes.
Ao final da brilhante apresentação, disse que a gaita era muito boa e perguntou se eu não queria vender. Disse que não, mas poderia levar toda noite para ele tocar.
Dias antes, eu pedi a ele para dar uma cavalgada na sua montaria, mas ele negou, devido a responsabilidade com o animal e com o leite que transportava.
Aproveitei para propor uma troca. Levava a gaita para ele e andava a cavalo enquanto ele usava o instrumento.
Inicialmente, ele não concordou, mas logo pediu para fazer o acordo. Todos os dias, daí em diante, levava a gaita, ele ficava tocando e eu passeando montado pelas cercanias. Ele pedia que eu fosse bem devagar, mas quando eu fugia da vista dele, acelerava em galope e o leite chacoalhava nos latões. Não sei como não talhava.
Toda tarde, início da noite, Gessi ficava no nosso portão, por uns 20 minutos, tocando a gaita, e eu cavalgando pelas ruas do Bairro São Cristóvão, chacoalhando o leite. Duas crianças, uma de 20 e outra de 12 anos, com os brinquedos trocados.